LEANDRO (EX-LIFE IS A LIE) LANÇA LIVRO DE ESTRÉIA


Enquanto existiu, o sexteto grindcore paulista Life Is A Lie representou não só uma complexa, brutal e por vezes impenetrável alquimia dos gêneros mais extremos da música sem concorrência no quesito intensidade em qualquer parte do mundo – representou também, via suas letras de altíssimo gabarito, um assalto verbal como poucas vezes se pôde ver na música pesada de nosso país. Pois, se o latente potencial literário tanto de pérolas como “Doença” e “De Pé Entre Ruínas” quanto das ‘liner notes’ que complementavam as letras nos encartes dos CDs do grupo (estas, autênticos exercícios em ficção curta), nos mostravam que a contribuição do vocalista Leandro Márcio Ramos (à época, conhecido como Lord Vicious) poderia – ou melhor, deveria – ultrapassar o meramente musical para desenvolver ainda mais sua verve na literatura de fato. Eis, então, que o projeto experimental Ugra Press, voltado para a arte underground, une forças com o cantor e traz à luz “Tudo Que É Grande Se Constrói Sobre Mágoa”, seu primeiro livro, reunião dos contos publicados por Leandro no blog Dissolve/Coagula (dissolvecoagula.blogspot.com) e mais material inédito, sempre a versar com sobriedade dilacerante sobre impossibilidades amorosas, sociais e profissionais. Fizemos algumas perguntas ao autor, a respeito da obra e, inevitável, também sobre a banda – leia agora.

Monophono: Desde que tomei contato com os textos presentes nos encartes do Life is a Lie, entendi que sua estréia em livro seria iminente… Por que demorou tanto? Questões práticas (grana, busca por editoras, etc) ou artísticas mesmo?

Leandro Márcio Ramos: Escrevo desde a adolescência, com irregularidade caótica, em um monte de cadernos que ficam acumulados nas gavetas das casas onde moro (ou jogados em cima de alguma mesa). Isso muito antes de começar o Life is a Lie, e o hábito se mantém até hoje. Em 2006 criei o Dissolve Coagula, blog que nasceu como uma espécie de continuação online de um zine que editei, o Reflexões de um Anticristo. No blog comecei postando alguns escritos antigos, que tinha mostrado para amigos próximos, e estes me disseram que valia a pena publicá-los de algum modo. Obviamente, sempre pensei em lançar um livro, mas nunca considerei o que tinha em mãos algo minimamente decente: olhava aquilo tudo, esses cadernos sujos e acumulados com poemas e contos ridículos, e tinha vontade de vomitar. Os anos foram melhorando alguns deles, e novos foram surgindo. Talvez isso tenha me impedido de lançar algo antes: essa obsessão em realizar algo que, na minha cabeça, seja aceitável. Para você ter uma idéia, pedi para duas pessoas diferentes revisarem o livro depois que eu mesmo já o tinha revisado e alterado, se não me engano, sete vezes! E em todas elas eu mudei alguma coisa, reescrevi períodos completos, mutilei diversas histórias. Se não tivesse a pressão da Ugra Press para entregar logo o original, eu estaria não respondendo a essa entrevista, mas praguejando sozinho aqui em casa e reescrevendo algum parágrafo pela centésima vez.

Monophono: “Tudo Que é Grande se Constrói Sobre Mágoa”. Esse título lhe veio como forma de unir todos os escritos, ou é sempre um ponto de partida para seu trabalho?

Leandro: Gostaria de eu mesmo ter cunhado essa frase; contudo, ela não é uma criação minha: foi-me dita por uma pessoa que me ensinou muitas coisas sobre magia, satanismo, etc, alguns anos atrás; e trata-se de um dos 21 Mandamentos Satânicos de uma ordem chamada Order of the Nine Angles. Como não concordar com essa frase tão simples e, ao mesmo tempo, tão verdadeira? Ela não apenas une e serve como ponto de partida para meus escritos, mas também une e serve como ponto de partida para explicar 99% da vida! Há quantos exemplos quisermos para comprovar isso. Podemos pensar no mundo antigo, no nascimento de Roma: César passa como um rolo compressor sobre seu amigo Marco Antônio ao voltar da Gália, promovendo uma sanguinária guerra civil – e eis aí, na traição entre velhos amigos, na fome pelo poder e pela glória, o acontecimento capital para o nascimento do Império Romano, base incontestável de todo o mundo ocidental; essa criação que não é apenas a mais destruidora da história, mas também a maior de todas as criações humanas. Não tenho dúvidas: grandes realizações têm como conseqüência lágrimas e sofrimento. Saber lidar com isso é importante para vermos que não vivemos em um mundo cor-de-rosa, mas em uma masmorra, cercados de abominações, de crimes, de doenças e de filhos da puta. Há triunfos que experimentamos nessa trajetória, há festas e amores para nos alegrar; mas, em um exame sem preconceitos da trajetória de qualquer pessoa, é possível ver o momento em que alguém saiu ferido – e é aí, nesse ponto, que o agressor se eleva e sobe mais um degrau, sobre o corpo daquele que fica chorando.

Monophono: Existe algum impacto de ter lançado um livro em 2011, ano raquítico para a arte, no qual os esforços em igual medida concentraram-se (e diluíram-se) em “criar” e “divulgar”?

Leandro: Sinto-me profundamente orgulhoso de ter lançado o livro, ainda mais com o cuidadoso projeto editorial que a Ugra Press idealizou para esse projeto, que engloba desde o convite para o Flávio Grão ilustrar os contos até o acabamento artesanal. Imaginar que cada livro demanda, no mínimo, 40 minutos para ser montado, em um processo que une os talentos minuciosos do Douglas (Alves Jr., da Ugra) em manejar a linha, a prensa, a tesoura e tudo o mais, me faz pensar que a aura antimoderna e a repulsa pelas realizações vulgares e estúpidas de boa parte da cultura contemporânea, que sempre estiveram presentes em meus escritos, também comparecem ao próprio processo de materialização do livro. Espero que as pessoas o recebam assim também.

Monophono: Pergunta clássica: influências literárias. Quais são as suas – as que o fizeram a cabeça no início, e as que fazem sua cabeça hoje.

Leandro: No início, sem dúvida Dostoiésvki. Li “Noites brancas”, uma novelinha dele, bem em um momento crítico da juventude, quando tive minha primeira decepção amorosa. Foi uma desgraça completa, e ler o livro, que comprei em um sebo horrível no centro velho de São Paulo, tornou tudo pior – e ali descobri que a literatura pode ser uma forma de consolo e de conhecimento de si. Logo depois, “Crime e castigo”; e então quis ser Raskolnikóv, falar russo, comer as mulheres russas e depois matar velhas usurárias com um machado (e agora faço a conexão entre o título que dei ao meu livro, discutido mais acima, e minha juvenil paixão pelo tema, de que grandes feitos são banhados em sangue…). Também apreciei muito o estilo árido de Graciliano Ramos, aquela secura vocabular, aquela grosseria e violência que temos no Paulo Honório de “São Bernardo” e no Luís da Silva de “Angústia” (romance tristemente colocado em um segundo escalão, mas cuja estrutura é absolutamente genial, se tivesse sido escrito em inglês seria um clássico). Também li muito Bukowski, muito mesmo… Tive uma fase de adoração por Lúcio Cardoso e sua “Crônica da casa assassinada”, outro brasileiro jogado às favas e que não deve nada aos melhores escritores que abusam de neuroses, fluxos interiores e descrições psicológicas em seus trabalhos. Hoje, ou mais precisamente de uns dois anos para cá, tem me interessado muito a literatura argentina. Então, me dedico a Cortázar e seu fantástico mundo de cronópios e famas, principalmente, mas também gosto do estilo seco e “callejero” de Roberto Arlt (este último é um gigante em construir ambientes pesados e personagens marcantes). Há nomes fora do mundo da literatura que decisivamente me influenciaram/influenciam ao escrever, e que não posso deixar de citar: (o filósofo romeno Emil) Cioran, cujo pensamento fez parte do decisivo processo de desencantamento do mundo em que vivemos na passagem da adolescência para a vida adulta, e que sempre está sendo revisitado, seja em leituras desordenadas, seja em conversas com amigos; (o filósofo italiano) Julius Evola, com seu pessimismo cultural delirante; (o cineasta/quadrinista/escritor chileno Alejandro) Jodorowski, cujas teorias psicomágicas dominaram minha mente por algum tempo… Talvez eu tenha esquecido de muitos outros, minha memória está se tornando uma vergonha. 

Monophono: Existe algum tema que você desenvolvia nas letras do Life is a Lie e que não o faz em textos mais longos (ou vice-versa)? Se sim, por que?

Leandro: Nas letras do Life is a Lie eu buscava, de certo modo, cristalizar visões e sentimentos que sabia (ou intuía, melhor dizendo) como comuns aos demais membros. E pelo próprio formato, era mais uma maneira de expressar quase que minimalisticamente conceitos por vezes muito complexos. Então, as letras eram mais compostas por frases de efeito do que por análises, problematizações ou enredos, possíveis apenas em textos mais longos. Sem nenhum medo de soar pretensioso: se há bandas que, pelas temáticas, podemos considerar como bandas políticas, vejo que o Life is a Lie (e os outros membros concordam comigo) pode ser considerada como uma banda filosófica, no sentido de que os temas que desenvolvemos eram muito mais “problemáticos” e abertos a caminhos variados, não encarnando uma “solução”, mas um anseio extremo por conflito e interiorização. Em textos mais longos, como os que publico no Dissolve Coagula, me permiti sempre ser mais pessoal que nas letras, incluindo muito de situações vividas (obviamente que transmutadas, distorcidas e mescladas pelo artifício literário). Creio que seja nisso, em ter uma dose alta de elementos pessoais, o que mais diferencia as letras dos textos mais longos que estão presentes no blog.

Monophono: No seu blog, você também se dá oportunidade de postar textos opinativos – que podem ser tanto sobre política quanto comentários sobre algum livro ou disco. Nunca lhe interessou desenvolver mais a fundo sua faceta de crítico?

Leandro: Nunca tinha me passado pela cabeça até você me perguntar, hahaha! Mantenho o Dissolve Coagula com esse perfil mais misto (ora textos literários, ora textos opinativos) desde 2009, se não me falha a memória. Com as resenhas sobre livros e discos, tento mostrar aos que seguem o blog um pouco do que tenho apreciado no momento – ou, melhor dizendo, de algum tipo de livro ou disco que de algum modo tenha relação com as coisas que escrevo. Por exemplo, a resenha sobre “A morte de Bunny Munro”, do Nick Cave, figura que foi marcante em minha formação, e cuja problemática relação com questões divinas influencia decisivamente a maneira como trato do assunto em meus textos; ou sobre o novo trabalho do Blood Axis, grupo neofolk que tem um aura antimoderna que está em muito do que escrevo também.  

Monophono: Esse é o segundo lançamento da Ugra Press, depois de um anuário de fanzines lançado em 2010… Você saberia nos dizer se existem planos para lançamento de outros autores? Ou mesmo um segundo livro seu?

Leandro: A Ugra Press, até onde sei, tem planos de investir em novos lançamentos no futuro. Não há, até o momento, nada confirmado; mas as possibilidades estão mais do que abertas. E sim, terá um segundo livro meu pela Ugra Press, que já estou escrevendo – e dessa vez será um romance. Ainda é prematuro dizer qualquer coisa, mas minha ambição é também fazê-lo pela Ugra, e sei que eles têm o interesse de lançar.
 
Monophono: Inevitável perguntar também sobre o LIAL… Depois desses cerca de três anos de encerramento de suas atividades, como você encara hoje o legado do grupo? Com o quê você deixou de ter identificação no mundo musical?

Leandro: Creio que o Life is a Lie teve um papel importante na música extrema nacional, no sentido de construir uma carreira independente, transitando entre várias cenas sem compromisso com modas ou discursos de fácil aceitação. E o que me deixa feliz com nosso legado é ver que não somos lembrados apenas pelo som que tocamos (sempre mesclamos o cru black metal com grind e crust, em anos onde isso não era tão banal quanto hoje, nem muito menos uma fórmula a ser seguida), mas somos lembrados também pela postura e fortes idéias que sempre levantávamos frente a qualquer público: a morte de Deus, os Nove Mandamentos Satânicos, o elogio da violência, o supremo triunfo do Nada perante todas as ideologias de salvação. Nunca foi apenas um som brutal o que nos motivava, mas a possibilidade de ir além em termos de expressão, baseado em um corpo de idéias afrontadoras que não pertenciam a nenhuma cena, mas apenas a nós mesmos. Hoje, o que me anima na música é quando encontro alma, rebeldia, profundidade. Pode ser black metal como o Circle of Ouroboros ou uma tetéia pop como a Chelsea Wolfe, não me importa nada: se nessa música encontro algo cativante para os ouvidos, instigante para o intelecto e agradável para a alma, então eu a ouço. Todo o restante jogo no lixo do esquecimento. Basicamente sempre agi dessa forma, e os anos foram me tornando mais seletivo, mais interessado em criações que superem em complexidade e impacto as anteriores. Nos últimos dias, apenas para exemplificar, tenho ouvido bastante Mater Suspiria Vision e Devil Makes Three, bandas que não tem absolutamente nada a ver uma com a outra, mas que conseguem, em minha opinião, acrescentar algo em seus respectivos estilos. Com o que eu perdi identificação no cenário musical: o ambiente de shows. Não tenho mais paciência. Raramente tem lugar para sentar, é difícil conversar porque o som é muito alto e a confusão de vozes me deixa confuso. Em resumo: prefiro o meu sofá. Ridículo dizer isso, mas no geral todo mundo é ridículo.

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  1. como faz pra descolar um desse??

    • Hell
    • 30 de janeiro de 2012

    muito boa entrevista, tanto o LIAL o dissolve coagula abriram minha percepção para muitas coisas, .agradeço ao Lord Vicious por isso.

  2. Leandro sempre pesado…ahahahah..vou ler o livro…
    Hildebrando

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